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quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Uma história doce como um “pastelzinho de Belém”



Dona Aparecida voltava para casa com sua costumeira dor nas pernas e sua crônica tossezinha.  Não perdia a missa diária das dezessete horas e, tão logo escutava o “vamos em paz”, levanta-se escutando “o senhor vos acompanhe” já na porta, para evitar as aglomerações na saída.
Era muito aflita, não suportava filas e sua tolerância ao esperar era zero.
Durante a missa suas orações e cânticos eram sempre na frente do padre e dos demais fieis.
Por ter uma voz aguda ela sempre acabava se destacando formando um efeito acústico irritante.
Não era seu costume transitar fora de casa na companhia da escuridão, fosse só ou acompanhada. Tinha verdadeiro pavor de se resfriar, assim sendo nunca se atreveu abusar da temperatura da noite, alegando ser muito sensível e vulnerável a tais exposições.
Orgulhava-se de seus costumeiros e cautelosos hábitos, pois mantinham-na sempre protegida dos perigos horrendos da pneumonia e da tuberculose. Atribuía tais doenças aos boêmios, aos desvirtuados morais, aos mundanos e pecadores, companheiros das lascívias da noite.
Conforme o costume passava na padaria do Seu Manoel e levava uma baguete, fazendo questão de frisar “bem queimadinha”.
Seu Manoel era viúvo, bem mais velho que Dona Aparecida e sempre fez questão de transparecer seu encantamento pela arredia senhora. Ora com um elogio, ora com um olhar cobiçoso, ora com uma sugestiva proposta de “deixa pra lá Dona Cida a baguete fica por minha conta”, pronunciado com um simpático sorriso e com seu carregado e imperdível sotaque lusitano.
Essa condição deixava Dona Aparecida muito desconcertada, com as faces num imenso rubor, denunciando de imediato seus mais latentes sentimentos.
Pegava a baguete, pagava e tentando esconder até de si mesma sua satisfação ao cortejo, saía gesticulando e falando palavras desconexas que até pareciam repúdio.
Seu Manoel adorava aquela encenação toda de Dona Aparecida e sentia-se realizado e viril.
Gabava-se de seu “borranchincho” e de sua velha forma de abordagem.
Enrolando o farto bigode e cantarolando dizia: "deu certo com a finada Maria, assim haverá de dar com a minha almejada Cidinha".
Dona Aparecida tão logo chegou em casa, ligou a televisão em um desses programas populares de tragédias da vida diária. Não perdendo o que se falava foi esquentar sua sopinha.
O apresentador ia reforçando os fatos dezenas de vezes, com formas auditivas e visuais diferentes, para obter a garantia que a pobrezinha da Dona Aparecida não se livrasse dele e daquelas macabras informações trocando de estação.
Mal começava a primeira novelinha da noite ela já estava num cochilo lascado no sofá.
Costumava ir para cama por volta das vinte horas e no dia seguinte levantava-se bem cedo.
Suas atividades do dia a dia eram rotineiras e metódicas.
O que realmente mudava o quadro daquela rotina eram as investidas apimentadas do Seu Manoel que agitavam os sonhos da Dona Aparecida.
O tempo foi passando e entre perseverança, muitos gracejos e baguetes do Seu Manoel, a seduzida já estava com o coraçãozinho mexido.
A essas alturas já se deixava ser chamada, sem resistências, apenas de “Cidinha”.
Ela perambulava após os cultos livremente pelo outro lado do balcão, quer servindo os fregueses, quer no caixa, onde rolava até furtivas beijocas.
A relação estava indo tão bem, que o seu garboso “Manoel” lhe ensinou os segredos de seus consagrados bolinhos de bacalhau e, até mesmo dos pasteizinhos de Belém.
A padaria já era um sucesso do bairro, mas com o apoio da Cidinha “bombava” muito mais.
Eles faziam planos, deliciavam-se com as conquistas e tudo que acontecia entre os dois era plenamente comemorado com alegria pelos habituais fregueses.
Era uma graça vê-los fechando a padaria por volta das vinte e três horas e indo abraçadinhos embora.
Manoel a deixava na porta de casa, dava-lhe um acalorado beijo, deixando-a pronta para varar a noite com sonhos repletos de confeitos de malícias e travessuras.
Foi que numa bela tarde, padaria lotada, Cidinha proclamou em alto e bom som o seu imenso amor pelo Manoel.
Ele não se contendo de paixão, aproveitando os aplausos e sorrisos da galera, abriu de imediato a gaveta do caixa e retirou um estojo vermelhinho que guardava há muito tempo.
Abriu, mostrou para a sua Cidinha e disse num sotaque que deu gosto a todos de ouvir: Aceitas se casar comigo Cidinha?
O povão vibrou e a Cidinha amou a proposta, dizendo um belo e audível “SIM”.
Lógico, saiu um longo beijo e muitos aplausos.
Proclama cumprido, fregueses, amigos e até mesmo o padre aguardavam ansiosos na porta da igreja do bairro.
Toca-se a música e entra a Cidinha deslumbrante toda de branco, como era o seu sonho secreto desde criança.
Quem passa pela padaria do Manoel e da Cidinha, pode testemunhar até hoje essa linda história de amor, uma história doce como um “pastelzinho de Belém”.



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